Tessituras em Diálogos - Histórias que devemos contar sobre algumas mulheres

01/06/2022

Eu fiquei pensando numa data significativa para escrever este texto. Várias possibilidades me passavam pela cabeça, mas nenhuma delas seduzia meus pensamentos a ponto de ser registrada em um texto. Até que ontem, dia 23/08, me deparei com uma data extremamente significativa para mim e meus estudos sobre gênero. O dia 23 de agosto é celebrado pela Organização das Nações Unidas (ONU), como o Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição. A escolha desta data faz referência à revolta da Ilha de Santo Domingo, que em 1791, levou à independência o Haiti – país caribenho que enfrenta, até hoje, sérios problemas de ordem socioeconômica e política. E que, frequentemente, é confundido com países do continente africano — numa explícita alusão aos estereótipos e visões colonizadas que temos acerca de territórios, ocupados majoritariamente por populações negras. Mas este é um tema para outro texto. Retomemos a data em questão.

A revolta de Santo Domingo, comandada por africanos escravizados, evidenciou o agenciamento destes sujeitos, deslocando-os, definitivamente, para o papel de "sujeitos históricos", pois o Haiti se tornou a primeira república governada por descendentes de africanos. Pouco se fala acerca do papel das mulheres nesta revolta, ou mesmo da presença de mulheres em outros movimentos revolucionários e abolicionistas nas Américas. Mas as lutas cotidianas travadas por estas africanas escravizadas foram extremamente significativas e contribuíram, a longo prazo, para que seus descendentes pudessem ter a liberdade como perspectiva de vida. E é sobre algumas destas mulheres, anônimas da História, que pretendo falar.

A minha pesquisa de mestrado, defendida no ano de 2011 no programa de Pós-graduação em História da UFMG, enfatizou as histórias e o protagonismo de mulheres africanas, trazidas para o Brasil como escravizadas e que conseguiram comprar a própria liberdade — num contexto de extrema violência e opressão colonial, da região das Minas Gerais. Suas trajetórias, permeadas de estratégias de sobrevivência e muito traquejo social, estão relatadas em fragmentos de documentos históricos: testamentos e inventários post-mortem, através dos quais é possível conhecer os aspectos culturais, religiosos e materiais de suas existências.

As mulheres em questão são as chamadas alforriadasou forras. Homens e mulheres escravizados podiam ser libertados da escravidão, por diferentes formas de alforria. Havia a alforria incondicional que libertava os cativos de forma "gratuita"; as alforrias condicionais — quando eram estabelecidas certas obrigações até que o cativo pudesse alcançar sua liberdade. E havia ainda as alforrias concedidas no ato do batismo. Mas nas Minas, predominava uma forma particular de alforria, chamada de coartação, que pode ser definida, a grosso modo, como a compra parcelada da liberdade, por meio de um acordo firmado entre o proprietário e o escravizado.

Embora existissem estas "brechas" no regime daescravidão, para que os cativos alcançassem a liberdade, antes da referida abolição da escravatura, é preciso lembrar que estas não foram situações generalizadas ou de fácil acesso. A existência das possibilidades de alforria não elimina a crueldade da escravidão atlântica e não apaga da história colonial, os inúmeros escravizados que perderam suas vidas durante a travessia atlântica ou nas minas, plantações e casas-grandes Brasil afora. Eis aí o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chamou de "o perigo de uma história única": a trajetória de algumas mulheres alforriadas não ameniza ou apaga o terror dos navios negreiros ou das inúmeras mortes provocadas pela escravidão.

Na minha pesquisa, encontrei Marianas, Marias, Terezas, Marcelas e outras mulheres de origem africana, identificadas nas fontes históricas com seus nomes "coloniais", atribuídos pelo batismo católico e por seus proprietários escravistas. Muitas delas se declaravam como vindas da "Costa da Mina", numa menção genérica, como muitos estudiosos pressupõem, ao porto africano no qual eram embarcadas. A ausência das informações sobre a vida destas mulheres no continente africano, já é um indício do apagamento e negação de humanidade que a instituição da escravidão atlântica lhes impunha. Ainda assim, (re)existiram em um contexto totalmente desfavorável. Esse era o caso, por exemplo, da alforriadaRosa da Silva Torres.

A liberta Rosa da Silva Torres, era dona do maior monte-mor encontrado na documentação dos libertos pesquisados. Era casada com o preto forro Antônio da Costa Barboza e tinha dois filhos: Antônio da Silva Torres, que foi classificado como pardo, tinha vinte e dois anos e era filho somente de Rosa; e Tereza crioula, de doze anos, que era "filha legítima do matrimônio"; ambos herdeiros da mãe. Rosa e seu marido eram proprietários de muitos bens e através da listagem de suas posses pode-se inferir que os investiam em várias atividades econômicas, desde a plantação de mandioca, para a produção de farinha até a exploração de "terras de minerar".

Já a liberta Tereza de Oliveira, moradora do arraial de Catas Altas, no ano de 1778, declarava-se como natural da Costa da Mina. Era solteira e mãe de quatro filhos.Possuía, além de uma casa, com quintal e bananal, vários tachos de cobre em diferentes tamanhos e pesos e ainda algumas joias. Tereza estava envolvida com o pequeno comércio, e declarava que várias pessoas a deviam e que tudo estava registrado em seu livro de assentos. Os devedores de Tereza eram, em sua maioria, forros e escravizados — o que sugere a construção de uma rede,não só econômica entre estes indivíduos, mas também a criação de mecanismos de solidariedade e sociabilidade.

A forra Rosa Soares Bernardes, também natural da Costa da Mina e moradora na cidade de Mariana no ano de 1787, também estava envolvida com o pequeno comércio.Entre seus bens destacavam-se uma caixinha de guardar doces com fechadura; barris; bacias de cobre de fazer doce; uma chocolateira; tachos e pratos de cobre. Já aforra Francisca da Conceição, natural da Costa da Mina e moradora no arraial de Bento Rodrigues no ano de 1781, era solteira e sem filhos. Francisca declarou que havia adquirido todos os bens por seu próprio trabalho e indústria. Ela era dona de uma venda. Na relação de seus credores, há uma dívida proveniente da compra de cargas do Rio de Janeiro e Francisca declarou que comprou as cargas para a venda que possuía.

A liberta Mariana Francisca Lopes, moradora em Mariana no ano de 1804, vendia hortaliças para complementar sua renda. E a forra Tereza Maria de Jesus, que teve seu inventário de bens feito no ano de 1790, possuía vários cortes de tecido; muitas fitas, de variadas cores; pedaços de renda; algodão fiado e com caroço; pedaços de entremeio – uma espécie de renda bordada, em tiras, entre espaços lisos; linhas e cortes de saias. Tais materiais sugerem o envolvimento desta liberta com a atividade de costureira.

Estes fragmentos de trajetórias das mulheres africanas alforriadas sugerem que muitas delas foram autoras de estratégias e de mecanismos econômicos que as sustentavam e que também possibilitavam certa ascensão econômica, em plena sociedade colonial. Além disto, é preciso considerar que o envolvimento destas mulheres com o pequeno comércio local, possibilitava a inserçãodelas em diálogos diversos, a participação na elaboração de estratégias e no auxílio a seus pares. A mobilidade social experimentada por essas mulheres africanas libertas chamava a atenção das autoridades coloniais, como relatado em uma petição da Câmara de Mariana, no ano de 1755. Para os oficiais da Câmara de Mariana, a população forra era responsável por uma série de transtornos: auxiliavam cativos em planos de fugas, acobertavam escravizados fugidos e representavam uma constante ameaça à ordem daquela sociedade.

As trajetórias que aqui brevemente relatamos nos ajudam a recuperar a ideia de que a História é um processo e que a própria abolição da escravatura, não pode ser compreendida como um acontecimento pontual, gracioso e benevolente. Tratou-se um longo e penoso processo histórico, que envolveu diferentes sujeitos, em articulações e arranjos cotidianos diversificados. E a participação de mulheres africanas forras na construção de estratégias de liberdade e que desafiaram a ordem escravista foi, sem dúvidas, um ponto importante deste processo. São histórias de mulheres que merecem ser contadas, recontadas e conhecidas, não apenas para relembrar o tráfico de escravizados e a abolição, mas para reafirmar a participação feminina nestes capítulos cruciais da nossa história.

*O monte-mor do inventário é a soma de todos os bens existentes quando o inventário foi aberto.

Referências

ADICHIE, Chimamanda N. O perigo de uma história única. Palestra no evento Tecnology, Entertainment and Design (TED), em 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ

ALVES, Rogéria Cristina. Mosaico de forros: formas de ascensão econômica e social entre os alforriados (Mariana, 1727-1838). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-8SRP67

Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (doravante citado como AHCSM). 2º Ofício. Inventário post-mortem de Rosa da Silva Torres. Data: 1742. Códice 63, auto 1423.

AHCSM. 1º Ofício. Testamento de Tereza de Oliveira. Data: 1778. Livro 57.

AHCSM. 1º Ofício. Inventário post-mortem de Rosa Soares Bernardes. Data: 1787. Códice 124, auto 2599.

AHCSM. 1º Ofício. Testamento de Francisca da Conceição, Data: 1781. Livro 57.

AHCSM. 1º Ofício. Testamento de Mariana Francisca Lopes. Data: 1804. Livro: 40.

AHCSM. 1º Ofício. Inventário post-mortem de Tereza Maria de Jesus. Data: 1790. Códice 122, auto 2541.

Arquivo Histórico Ultramarino. Projeto Resgate. Documentos relativos à Capitania Mineira. Caixa 67, documento 61.